A pandemia de Covid-19 trouxe incontáveis mudanças ao mundo jurídico, principalmente, no que tange às obrigações contratuais. As alterações na forma de ver o dever do devedor de cumprir sua obrigação foram logo verificadas nas relações de direito público, a exemplo do que ocorreu com a prorrogação dos vencimentos de parcelamentos tributários, regulados pela Portaria n.º 201/2020 – Ministério da Economia, e com a possibilidade de renegociação de dívidas federais, trazida pela Portaria PGFN n.º 14.402.
No campo das relações privadas, percebeu-se a necessidade de se discutir a alegação de descumprimento de obrigação, uma vez que a pandemia caracteriza um evento de força maior ou caso fortuito, bem como um crescente discurso entre advogados e estudiosos de Direito Civil para que a negociação visando adaptações nos contratos a fim de mantê-los se tornasse um dever entre as partes.
Esse tipo de renegociação mostrou-se uma interessante saída à crise contratual instaurada por conta da pandemia, uma vez que permitiu, ao mesmo tempo, a observância da autonomia dos contratantes, por meio da renegociação de suas obrigações, e da manutenção da força obrigatória do contrato, traduzida na máxima “o contrato é lei entre as partes”.
Em suma, trata-se de um comportamento que objetiva a revisão do contrato frente ao surgimento de situações imprevisíveis e/ou incontornáveis que resultaram em alguma desigualdade não prevista anteriormente, visando reequilibrar a relação contratual.
Apesar disso, é importante ter em vista que a revisão contratual não é garantida. Mas, ainda assim, desde o surgimento da pandemia, advogados e estudiosos do tema passaram a incentivar mais esse comportamento de renegociação com vista a postergar o acionamento imediato do Poder Judiciário.
É em meio a essa realidade que, por exemplo, o Juízo da 12º Vara Cível de São Paulo, por ocasião de uma ação de revisão contratual, concedeu decisão antecipada para alterar o índice de correção monetária de aluguéis de um contrato de locação, em função de a variação deste índice de reajuste, inicialmente combinado entre as partes, ter se tornado demasiadamente elevado (Processo n.º 1000029-96.2021.8.26.0228).
A decisão foi fundamentada na caracterização de “grande desproporção por motivo imprevisível entre o valor da prestação originalmente contratada e o momento de sua execução”, o que permite a readequação da obrigação contratual pelo Poder Judiciário, conforme previsão do artigo 317 do Código Civil Brasileiro.
Embora a decisão tenha ocorrido em juízo de delibação, ou seja, mediante análise apenas da presença de requisitos básicos para a concessão da decisão, ela reforça a ideia da necessidade de adequação dos contratos em tempos como o da pandemia de Covid-19 para que a relação contratual se mantenha equilibrada e, assim, o contrato atinja a sua função social.
Em que pese a existência de argumentos de que a autonomia da vontade das partes já teria sido observada em negociações preliminares, propostas e até na confecção da minuta contratual, não havendo razão para intervenções do Poder Judiciário, não se pode esquecer que a renegociação de contratos gera efeitos que vão além de uma análise imediata e estanque de perda ou diminuição de valores ou prestações (por exemplo, visando a simples manutenção de relação empresarial entre as partes, surgimento de parcerias, etc).
Como o cenário de pandemia ainda permanece, inclusive com o retrocesso de planos estaduais e municipais de retomada de atividades, é certo que situações envolvendo desequilíbrio contratual ainda continuarão a surgir e, possivelmente, com novos desafios.
Pode-se citar, para ilustrar, a própria alegação de força maior por conta da pandemia para justificar eventual retorno a uma fase mais restritiva de plano governamental de retomada de atividades. Por passar a ser evento previsível (pois as autoridades estão informando com certa antecedência as datas em que as restrições serão aplicadas) ainda seria possível requerer a revisão do contrato?
Em uma primeira análise, seria possível aplicar o Enunciado nº 17 da I Jornada de Direito Civil, que dispõe que “a interpretação da expressão ‘motivos imprevisíveis’ constante do art. 317 do novo Código Civil deve abarcar tanto causas de desproporção não previsíveis como também causas previsíveis, mas de resultados imprevisíveis”, utilizando-se do mesmo raciocínio adotado na fundamentação da decisão judicial mencionada acima.
Mas essa e outras questões certamente demandam uma análise dedicada de profissionais da área jurídica, a fim de que a resolução de embates relativos a desequilíbrios contratuais observe sempre os princípios que fundamentam as relações civis.
A equipe de Direito Empresarial do escritório Gaiofato e Galvão Advogados Associados permanece à disposição para esclarecimento de dúvidas acerca do assunto.